Nas áreas onde não há cobertura jornalística consistente e são ainda maiores os riscos perante o direito à informação, os desertos de notícias deixam comunidades isoladas do fluxo informacional confiável e regular.
Nesta entrevista com Sérgio Lüdtke, jornalista, pesquisador, editor do Projeto Comprova e presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), foram abordados aspectos desse fenômeno para entender o que leva à sua formação e estratégias para superá-lo.
Os desafios enfrentados pelos veículos jornalísticos locais, especialmente no que diz respeito à sustentabilidade financeira, são críticos para a sobrevivência desses veículos. Outro ponto é sobre a falta de diversidade nas fontes de financiamento que pode tornar essas organizações dependentes de recursos públicos ou sujeitas à influência política, comprometendo sua independência editorial.
Sérgio destaca o que aponta como voluntarismo entre jornalistas, e como a ausência de políticas públicas de incentivo à criação e à estruturação de veículos locais agrava a situação. Além disso, discorre sobre o uso de tecnologias emergentes, especialmente a Inteligência Artificial, como ferramentas para fortalecer os veículos jornalísticos locais.
Se a informação de qualidade é uma vacina contra a desinformação, como garantir que os cidadãos em regiões desprovidas de cobertura jornalística recebam conteúdo confiável? E como a sociedade civil, o mercado e os próprios produtores de veículos jornalísticos locais podem colaborar para fortalecer essas comunidades e reverter essa situação?
O conceito de desertos de notícias surge para classificar territórios que não são atendidos por veículos jornalísticos locais, portanto, ficam isolados em seu direito à informação. Quais são os critérios utilizados para essa classificação?
Desertos de notícias para o Atlas da Notícia são os municípios cujos moradores não têm a sua disposição nenhum veículo jornalístico sediado no município e que faça cobertura regular de fatos e eventos de interesse das comunidades do território. O Atlas desconsidera organizações ou arranjos informais que tenham vínculo com o Estado e com igrejas.
Quais são os principais problemas que afetam os veículos locais e trazem dificuldade para existência nesses territórios?
O principal desafio à sobrevivência e ao crescimento dessas organizações é a sustentabilidade financeira. Uma grande parte depende exclusivamente da publicidade e corre o risco de se tornar refém do poder público municipal – sempre um potencial anunciante – a quem deveria fiscalizar.
Mas existem outros que se somam à falta de diversidade das fontes de financiamento. Os mais significativos são a capacitação para explorar novas linguagens e a ausência de pessoas dedicadas à gestão.
Do ponto de vista político, quais as estratégias que devem ser tomadas para enfrentar essa problemática dos desertos de notícias? Já existem políticas públicas nesse sentido?
Os desertos têm sido reduzidos por conta do voluntarismo de jornalistas que criam iniciativas individuais, coletivas ou empresariais para cobrir esses territórios áridos de informação. Falo em voluntarismo mais do que em empreendedorismo porque a ausência de barreiras de ingresso neste setor faz com que muitos se contentem com miragens quando deveriam estar construindo uma visão de futuro. Eles estão solitários nessa luta.
Não há, de parte do poder público, políticas de incentivo à estruturação do setor ou de incentivo à criação de novas iniciativas. Entendo que é urgente a criação de políticas públicas que incentivem o surgimento de novos arranjos jornalísticos locais e apoiem o crescimento dos já existentes. Informação de qualidade precisa ser uma questão de política pública e à sociedade é preciso mostrar que o jornalismo local é fundamental para a democracia, sobretudo neste século marcado pela desinformação.
Os veículos que já nasceram como negócios digitais ou aqueles que fazem bom uso disso parecem se destacar no jornalismo local. Por outro lado, muitos veículos locais têm problemas financeiros para manter os negócios e isso gera, em muitos casos, dependência de verba pública. Como enfrentar essas barreiras?
A transformação digital exige uma mudança bastante profunda no funcionamento das empresas e no modo de pensar de suas lideranças. E isso nem sempre é uma empreitada fácil. Muitas vezes essa transformação também exige que se abra mão de rentabilidade e há a insegurança causada por novos modelos de negócio sobre os quais não se tem experiência e muito menos controle.
E essa é a armadilha que leva muitos a se tornarem dependentes de políticos e partidos que ocupam as prefeituras, o que os distancia das comunidades a quem deveriam servir. No jornalismo local, os compromissos editoriais com as comunidades precisam ser vistos como parte do modelo de negócios. Quem trai esses compromissos compromete seu futuro.
A tecnologia, especialmente a IA, é uma aliada nesse processo? De que forma?
Sim, vários recursos providos por Inteligência Artificial podem melhorar a produtividade e até mesmo qualificar a produção do conteúdo. Ela pode, por exemplo, ser usada para estruturar apresentações a potenciais financiadores, estruturar projetos e pautas editoriais e até mesmo criar conteúdos que possam ser gerados a partir de bases de dados estruturadas. Desde que haja transparência para o leitor do uso que foi feito desses mecanismos, entendo que a IA possa ser vista como aliada.
Acesso à informação implica em democracia mais forte. Nessa dimensão, também falamos de combate à desinformação. O que os números de desertos de notícias revelam sobre a relação entre esses aspectos?
Não temos pesquisas específicas sobre a desinformação nos territórios que são desertos de notícias, mas se entendermos que a informação apurada com rigor jornalístico e que serve aos interesses de uma comunidade pode ser uma vacina contra a desinformação, os cidadãos que vivem nos desertos não estão na fila do imunizante.
Mas eles seguem recebendo e compartilhando conteúdos cuja origem nem sempre é conhecida pelas redes sociais e por aplicativos de mensagens. Quem não tem um veículo jornalístico ao qual possa recorrer está em área de risco.
Que conselhos podemos apontar para produtores de veículos jornalísticos locais, para o mercado e a sociedade civil em busca de colaboração para fortalecer as comunidades e tentar acabar com os desertos de notícias?
Para quem quer criar um veículo, sugiro tomar algumas precauções antes de se aventurar e gastar seus poucos recursos no empreendimento, ainda que o seu “capital social” nas plataformas seja consistente. Fazer uma boa análise dos cenários possíveis, rascunhar um plano de negócios e se associar a alguém com experiência e foco em gestão é muito importante.
Aos que já estão neste mercado, eu sugiro gastar um tempo para conhecer melhor sua audiência e pensar em como ser absolutamente relevante para essas comunidades de leitores. Dessa relevância percebida pela audiência e do conhecimento que se tem do público podem surgir novas ideias para testar diferentes fontes de financiamento. A publicidade provavelmente vá se manter sendo a principal fonte, mas até ela gera mais valor quando essa relevância é reconhecida.